quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Post sem título - Maria Eugénia Coelho Beltran Pepe Lopes



"Há coisas que não queremos que aconteçam, mas temos de aceitar, coisas que não queremos saber, mas temos de ouvir e pessoas sem as quais não podemos viver, mas temos de deixar partir."
Autor Desconhecido
(como?)


Na Corda Bamba

Se olharmos com atenção para a vida de qualquer pessoa, veremos que viver é andar na corda bamba e será a forma como enfrentamos as dificuldades que nos define.

Maria Eugénia Coelho Beltran Pepe Lopes nasceu a 27 de Outubro de 1932.
Os seus pais, Eugénio Beltran Pepe e Manuela da Conceição Andrade Coelho, tinham tido antes dois filhos, Manuel e Luísa. O primeiro morreu à nascença – imagino a parteira a baptizá-lo à pressa - a segunda, quando ainda não tinha dois anos, de meningite tuberculosa. Morreram antes do seu nascimento, e cresceu como filha única. Faltou-lhe nos momentos difíceis o apoio que poderia ter encontrado nos irmãos, mas teve um primo, cerca de um ano mais novo, com o mesmo nome, Eugénio, que era como um irmão. Ensinou-a a nadar bruços e ela aprendeu tão bem que até nadou no mar alto.
Começou a andar com a ajuda da cadelinha Miss, agarrando-se a ela para os primeiros passos. Depois dela morrer, sendo ainda criança, recordava-a com saudade “a minha Miss que Deus tem” e quem a ouvia, sem ter conhecido a Miss, pensava que falava de uma pessoa, uma ama ou preceptora (teve depois ainda pequena, o Jolie - já o Come-se-há em Meleças adoptou o seu pai - e em adulta, quando morámos em Gondomar, o Fiel e o Wolf, e no Porto, o Tuiqui – não quis ter mais nenhum pelo desgosto em os perder).
Em criança a sua mãe gostava de manter a casa – o 2º andar de um prédio na Duque d’Ávila impecável. Um dia levou um susto porque lhe vieram dizer que a filha de cinco ou seis que deveria estar na marquise, estava a brincar no pátio. Depois de ter observado um menino mais velho a fazê-lo, tinha arranjado forma de chegar lá, descendo pelo exterior, talvez agarrando-se às saliências que encontrou na parede.
Quando era pequenina, a mãe gostava de a mascarar no Carnaval. Ela gostou da fantasia de ratinho por ser quente, já não tanto da do traje regional, de minhota ou saloia, por com elas ter frio.
O pai levava-a para passear e trazia-lhe para provar comidas descritas em livros (do Emílio Salgari e outros) como água de coco. Ultrapassou doenças graves como a difteria, sem os remédios actuais. Para a ajudar na convalescença o seu pai arranjou a Vivenda Geninha em Meleças.
Morava em Lisboa com os seus pais e entrou para o Colégio Alemão logo na infantil (sonhava em alemão). Nessa altura era loura e nos retratos aparece com tranças compridas. Os colegas brincaram com o seu primeiro apelido, imitando um coelho. Para a reconciliar com o seu nome, a mãe Manuela levou-o ao avô Joaquim Guilherme Andrade Coelho que lhe contou sobre homens ilustres que tinham o mesmo apelido.
Quando no colégio aprendeu equitação. Eram crianças e gostavam de uma égua mansinha. Uma vez o professor destinou-lhe um cavalo temido que tinha vindo do exército. Talvez por nesse dia estar aborrecido com alguma coisa, o professor deu uma palmada no cavalo que partiu a galope. Ela conseguiu manter-se sobre o cavalo, sem cair.
Quando ia a casa dos colegas com ambos ou um dos progenitores de nacionalidade alemã, gostava de como eram práticas – sem os naperons e bibelots das casas portuguesas, e de beber cacau quente.
Durante o período da Segunda Guerra Mundial irmãos dos seus colegas combateram e morreram na guerra - os pais de um deles, professores no Colégio, quando o filho mais velho morreu, não vestiram luto porque o filho tinha morrido pela pátria.
Em Lisboa seguiam-se as instruções para pintar os vidros de azul e colocar protecções para que no caso de um bombardeamento os vidros não se partissem e entrassem para o interior das casas, ferindo os seus ocupantes.
Houve racionamento com senhas. A minha avó tentou fazer pão, mas o resultado não foi muito feliz, saíram uns pãezinhos meio insonsos e apesar do meu avô ter dito que a culpa era do forno, não voltou a tentar.
Surgiram novos penteados femininos, “à refugiada”, cabelo preso, em rabo de cavalo ou numa banana, ou curto, penteado pela própria, sem ir ao Cabeleireiro.
Viam-se muito estrangeiros, sobretudo artistas que tinham fugido e queriam ir para os Estados Unidos.
No final da guerra o Colégio Alemão fechou e a minha mãe passou a ter aulas com uma professora contratada que a influenciou a escolher ciências. Via as colegas que seguiram línguas com dificuldades no alemão que ela ultrapassava com facilidade. Acabou por não ir para a Faculdade.
Cortou o cabelo que escurecera curto. Sabia vestir-se bem, parecia uma artista de cinema.
Sem precisar acompanhou a dieta de uma amiga de leite e bananas que queria emagrecer para o casamento (e conseguiu).
Conheceu o meu pai, médico veterinário, por ele ter arranjado um quarto perto. Queixou-se da vez em que no Eléctrico ele veio o caminho todo voltado para trás a olhar para ela. Passou a rondar o prédio onde ela morava, perguntando-lhe por gestos para a janela se o aceitava. Passou pelo crivo dos futuros sogros.
Também o pai dele veio de Trás-os-Montes conhecê-la. Aparentemente gostou dela, mas queria que o filho casasse com uma prima da mesma terra. Marcaram o casamento e pouco antes chegou um telegrama anunciando que o pai estava a morrer. O noivo largou tudo para ir ter com ele e descobrir que afinal estava bem. Isso sucedeu duas vezes. O Padre anunciou que com aquelas desmarcações já não os casava. A minha mãe também aborrecida com o sucedido foi para casa de uns primos no Algarve, onde o meu pai foi procurá-la. Conseguiu convencê-la a dar-lhe mais uma oportunidade e casaram pelo civil. A mãe da noiva que antes até simpatizava com o noivo não quis ir, mas o meu avô foi assistir.
O meu pai concorreu e foi colocado em Paços de Ferreira. Foram morar para lá os dois, numa altura em que ali as mulheres não iam a cafés ou usavam calças em vez de saias, não havia televisão e estava longe da família e dos amigos. Terá sido aí que começou a desenvolver uma depressão.
Ao final de cinco anos conseguiram ter uma filha, um bebé lindo e especial, a minha irmã mais velha, Isabel, logo adorada como primeira neta dos dois lados da família. Seguiram-se mais duas filhas. Antes do nascimento da terceira, morreu o seu pai, e para ajudar a mãe a recuperar pediu-lhe para a ajudar a tomar conta da neta mais nova (o que ela fez assim como das outras até ter de nos deixar cerca de oito anos depois).
Esteve ao lado do marido, nos problemas do seu trabalho e de família, na doença e cirurgias, ajudou-o a voltar à vida.
Desde criança em que foi operada ao apêndice sendo a anestesia com éter (foi para a mesa de operações nos braços do pai) passou por várias cirurgias, ao peito, ao útero, ao braço que partiu numa queda, a úlcera no duodeno, sofreu da tiróide, da vesícula, de osteoporose, de divertículos, sempre com coragem para querer levantar-se no dia seguinte.
Dona-de-casa, cozinheira, costureira, enfermeira, explicadora, professora, cabeleireira, manicura, conselheira.
Melhor mãe do mundo, centro do universo, companheira nos bons e maus momentos, a proteger e a torcer pelas filhas.
Foi apanhada em casa, de surpresa, pela morte, em 5 de Outubro de 2017, antes do seu aniversário.
Foi com espírito de aventura, amor e coragem que enfrentou a corda bamba da vida.

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